quarta-feira, 6 de abril de 2011

A propósito do "Jogo das Diferenças: o Multiculturalismo e seus contextos"



Sobre o Relativismo Cultural
Por Renato Ortiz
(Ver todo o artigo aqui.)

"Existe atualmente um mal estar do universalismo. A revolução digital, os meios de comunicação, as finanças, as viagens, o imaginário coletivo do consumo, nos levam a sublinhar os traços compartilhados desses tempos de globalização. A própria noção de espaço se transformou, os símbolos e signos culturais adquirem uma feição desterritorializada, descoladas de suas cores nacionais ou regionais, redefinindo-se no âmbito da modernidade-mundo. Entretanto, diante deste movimento real das sociedades uma desconfiança se insinua. O mal estar é uma sensação imperceptível de desconforto. Ele é palpável mas disperso, sua manifestação é sinuosa, difícil de ser identificada. Porém, malgrado sua imprecisão, ele é evidente, tangível. A situação de globalização implica a necessidade de se buscar por respostas consensuais em relação aos problemas comuns, mas nossas certezas em relação às crenças anteriores se esvaneceram. O universalismo dos filósofos iluministas já não nos serve de guia. As guerras, a dominação tecnológica, os desmandos da colonização, o eurocentrismo, a divisão das sociedades em civilizadas e bárbaras, o racismo, são fatos inegáveis. Para contorná-los, de nada adianta um certo malabarismo intelectual que busca compreendê-los como "desvios" de uma modernidade incompleta. Paradoxalmente, no momento em que uma determinada situação histórica aproxima a todos, o universal, como categoria política e filosófica, perde em densidade e em convencimento. Ressurge, assim, um debate antigo, mas que agora reveste-se de formas distintas: o relativismo. Ele associa-se às reivindicações identitárias, ao multiculturalismo, valorizando a diversidade cultural como traço essencial da humanidade. Estaríamos vivendo uma mudança do humor dos tempos. As qualidades positivas, antes, associadas ao universal, se deslocam para o "pluralismo" da diversidade. Talvez o exemplo mais emblemático disso seja a redefinição do mito de Babel. Na tradição da Europa ocidental ele é uma mancha, uma regressão. Para superar a incomunicabilidade das falas, os homens deveriam buscar uma língua universal capaz de fundar a harmonia entre os povos e os indivíduos. Babel significava simplesmente a confusão dos interesses, o domínio irracional das paixões particulares. Quando dizemos hoje que a Internet é uma Babel, estamos no pólo oposto. O diverso torna-se um ideal e o uno uma "maldição". No entanto, é nesta brecha que o mal estar se introduz. A diversidade é sinal de riqueza, patrimônio a ser preservado, mas simultaneamente fonte potencial de conflito diante de um destino comum. O dilema é que ambas as categorias, o universal e a diferença, encontram-se comprometidas, modeladas pelo contexto que as redefinem e as limitam


(...)


Em 1947, um grupo de antropólogos, liderados por Herskovits, é convidado pela ONU para escrever o relatório preparatório à carta dos Direitos Humanos. O resultado é um anti-clímax. Seus autores se debatem entre a afirmação dos direitos universais e o horizonte relativista dos valores. O documento que eles redigem é curto, contém uma parte interpretativa e um conjunto de recomendações(31):

1. "O indivíduo realiza sua personalidade através de sua cultura, portanto, o respeito pelas diferenças individuais implica o respeito pelas diferenças culturais".
2. "O respeito pelas diferenças culturais encontra-se cientificamente validado pelo fato de não ter sido descoberta nenhuma técnica de avaliação qualitativa das culturas".
3. "Os padrões e os valores são relativos às culturas dos quais eles derivam, assim, qualquer tentativa de se formular qualquer tipo de postulado que decorra de um código moral e de crenças de uma única cultura, deveria ser excluída da aplicabilidade de qualquer Declaração dos Direitos Humanos dirigida à humanidade como um todo"



O texto criou uma série de constrangimentos, pois tinha sido elaborado pela comissão executiva da Anthropological Association. Várias foram as críticas(32). Uma parte delas focalizava suas contradições internas. Por exemplo, dizer que "o respeito pelas diferenças individuais implica o respeito pelas diferenças culturais", é uma afirmação genérica, sem nenhum fundamento. O contrário seria provavelmente mais plausível. Por outro lado, considerar a ausência de uma técnica de avaliação das culturas como prova do respeito às diferenças culturais, é associar dois tipos de julgamentos sem nenhuma relação de necessidade entre eles. Restam, ainda, algumas observações de caráter mais substantivo. Primeiro, a ilusão que um grupo de profissionais nutre ao arbitrar temas que fugiam à sua "jurisdição". A autoridade científica dificilmente seria legítima no campo dos valores (Durkheim dizia, "a ciência é uma moral sem ética"). Segundo, qual o grau tolerável das diferenças. Seria justo aplicá-la ao nazismo? Como justificar o engajamento de vários antropólogos durante a Segunda Guerra, diante dos princípios recomendados. O relatório continha, ainda, na sua parte argumentativa, algumas passagens controversas: "o homem é livre somente numa sociedade na qual existe uma definição da liberdade". O que fazer diante das condições nas quais o conceito de liberdade inexiste? Muitas dessas questões serão retomadas posteriormente na discussão sobre os direitos humanos(33). Mas gostaria de sublinhar uma aspecto deste incidente: a coerência do texto apresentado. Ele leva às últimas conseqüências a lógica prescrita por um determinado tipo de pensamento.


(...)


O relativismo cultural possui um mérito, ele inocula no pensamento uma sensibilidade pelo diverso. Isso não é pouco. A tradição das Ciências Sociais é fruto do Iluminismo e do industrialismo da modernidade. Seu universalismo é sempre interessado. Convenientemente, não se objetiva nunca o lugar a partir do qual o discurso se enuncia. Esta omissão intencional atribui ao Outro o pecado do provincianismo. Encerrado nas suas fronteiras ele seria incapaz de transcender os seus próprios limites. Sei que a Antropologia anterior à década de 50, quando o processo de descolonização da África e parte da Ásia não tinha ainda se completado, encerrava uma boa dose de etnocentrismo. O Outro era silencioso, somente podia se exprimir através da fala de alguém que lhe era estranho. O antropólogo possuía o monopólio da interpretação das sociedades ágrafas. Mesmo assim, os textos da escola culturalista contém um esforço notável de descentramento. É como se eles nos dissessem, há muitas coisas para se compreender no mundo e a curiosidade intelectual não deve se conformar ao espaço de uma única província (Europa ou Estados Unidos). Neste sentido, os antropólogos têm algo de distinto em relação a seus antecessores. Pode-se ler Montaigne, e sua crítica ao canibalismo, como uma metáfora ao barbarismo da civilização dita ocidental; ou Montesquieu, em suas Cartas Persas, como um olhar distante e irônico em relação aos europeus. Também os românticos "falavam" do outro, embora no fundo estivessem interessados em si mesmos. Ao tomar o "primitivo" (agora, utilizo propositalmente as aspas) como objeto de estudo, a Antropologia nomeia um campo específico, com uma identidade própria. Em tese, importa captar a especificidade dessas sociedades (e não do mundo europeu) apartadas da modernidade. A sensibilidade pelo diverso funciona, assim, como um mecanismo intelectual poderoso."






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