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(*) Crónica de Alberto Oliveira Pinto publicada no Mensário Angolano de Cultura "O CHÁ"
Número 2 - 2ª série | Ano 1 - Setembro 2012 | Director: Jacques Arlindo dos Santos
Em 1934, na Exposição Colonial do Porto, foi exibido um mapa, cuja autoria era atribuída a Henrique Galvão, onde se mostrava a Europa polvilhada pelas então colónias portuguesas: a Galiza, parte da Estremadura Espanhola e a Andaluzia encontravam‑se cobertas pela Guiné, por Timor e pelos arquipélagos dos Açores, Madeira, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe; Moçambique preenchia os territórios da Estanha, da França, da Suíça, da Áustria e da Itália; Angola, por sua vez, ocupava os espaços geográficos da Alemanha, da Polónia, da Checoslováquia, da Hungria, da Jugoslávia e da Roménia. No cabeçalho
deste mapa, proclamava‑se em caixa alta: “PORTUGAL NÃO É UM PAÍS PEQUENO”.
Em 1972, quando fiz a minha 4ª classe, a dois anos do golpe de Estado de 25 de Abril de 1974 e a três da independência de Angola, o discurso colonial português já havia sido objecto de múltiplas maquilhagens. Se, com a revisão constitucional luso‑tropicalista de 1951, as “colónias” haviam retomado a designação oitocentista de “províncias ultramarinas”, com a revisão constitucional falaciosa de 1971 ‑ que procurava, tardia e artificiosamente, imitar uma certa França de De Gaulle de entre 1958 e 1960, fingindo lançar os alicerces de uma inviável e inconcebível confederação das colónias portuguesas ‑ as duas maiores possessões coloniais portuguesas do continente africano, Angola e Moçambique, passaram a ser oficialmente designadas por Estados. Contudo, embora nem a minha professora primária nem nenhum de nós, seus alunos, tivéssemos tido acesso ao mapa de 1934 que proclamava que “PORTUGAL NÃO É
UM PAÍS PEQUENO”, a mensagem que os professores se viam obrigados a transmitir e os alunos a assimilar ainda era, em 1972, exactamente essa dos anos de 1930, sem mudar nem uma vírgula.
E não foram poucas as pessoas que, em Portugal, a três anos da Independência efectiva de Angola, se indignaram com a ideia de se dizer Estado de Angola e Estado de Moçambique porque, alegavam, isso já “cheirava” a Independência. Acrescentavam, aliás, bradando aos céus, que, ao contrário do que, numa hipocrisia paternalista que ainda hoje se mantém, apregoavam em relação ao Brasil, se “correria o risco” de em Angola e Moçambique, uma vez independentes, se virem a falar outras línguas que não o português. Mal suspeitava a criança de dez anos que eu era que se encontrava perante o sémen daquilo a que Alfredo Margarido viria inteligentemente a chamar o “estrume teórico” da “lusofonia”, no qual nos encontramos atolados até hoje e de que o vergonhoso Acordo Ortográfico tem sido o exemplo mais flagrante. Três anos depois, ao longo de todo o ano de 1975, a mesma criança, agora com treze anos de idade, viria a assistir pela televisão aos discursos dos líderes independentistas, ao tornarem‑se chefes de Estado, todos sublinhando – excepto Agostinho Neto, que nem teve tempo para isso – que a língua oficial dos “novos países”, a cujos destinos presidiam, seria o português.
E todos os políticos portugueses, de todos os quadrantes ideológicos, assim como uma elevada percentagem dos cidadãos da antiga metrópole, regozijaram‑se por esse facto. Todos? Não. Houve excepções.
Recordo‑me de Francisco Salgado Zenha, um brilhante e saudoso ministro dos governos provisórios, ter afirmado peremptoriamente,mais do que uma vez: “os povos dos países independentes falam a língua que bem entenderem e ninguém os obriga a falar a nossa” (Sic.). Mas Salgado Zenha, infelizmente, pregava
no deserto. A mentalidade da maioria dos seus compatriotas – e subsiste actualmente, passados quase quarenta anos – era a de que Portugal, sendo agora um país pequeno, poderia conservar a sua “grandeza” através da língua. Como muito bem o escreveu Alfredo Margarido, os portugueses descobriram uma "prótese” que compensaria o sentimento de amputação do Império. E essa “prótese” viria pouco tempo depois a ser baptizada, pelo malogrado professor Carmo Vaz, com um nome pomposo: “lusofonia”.
Os povos continuaram a desconhecer‑se, enquanto em Portugal os diversos poderes políticos, que se foram sucedendo ao longo da ainda hoje vigente 3ª República, não cessaram de ulular patranhas estafadas tais como “existe uma história comum entre nós e os PALOP” ou “os portugueses conhecem a África melhor do que ninguém”. Instituições culturais portuguesas organizavam viagens turísticas às antigas colónias
– excepto a Angola, a pretexto de que se “encontrava em guerra” – com a finalidade única de (re) visitar…
“vestígios portugueses”! Esta burguesia néscia e desprovida de imaginação vangloriava‑se de ter reencontrado intactas igrejas e fortificações “portuguesas” no Brasil, em Moçambique, em Goa ou em Macau, assim como se envaidecia, de modo pusilânime, pelo facto de estes povos não europeus falarem… português!
Contudo uma minoria, na qual eu próprio, entretanto adulto, me incluía, indagava‑se: que tem isso de especial? É óbvio que há “vestígios portugueses” nas antigas colónias, pois Portugal foi colonizador e a memória do facto colonial, ainda que tenazmente silenciada pelos poderes políticos e pelos interesses económicos, não cessa com as chamadas “descolonizações”.Mas o que é feito dos “vestígios” não portugueses? Esses é que interessam verdadeiramente! Por exemplo, que outras línguas são faladas, sem ser o português, nos países ditos de “língua portuguesa”? Em meados da década de 1990, às vésperas da institucionalização da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), o meu amigo Ismael Mateus escrevia, e muito bem, que o fundamental na chamada “lusofonia” era conhecermo‑nos e respeitamo‑nos uns aos outros naquilo que temos de diferente e não naquilo que temos em comum. É com o mesmo espírito com que Ismael Mateus escreveu essa crónica há cerca de quinze anos que agora redijo estas linhas. Há que intensificar e alimentar o diferente e não o comum, e urge cortar cerce as tentações saudosistas e os embustes identitários.
Retomemos o exemplo da língua, do qual a ortografia tem sido, nos últimos tempos, a componente aparentemente mais manipulável pelas mentes perversas. O essencial é, desde já, empenharmo‑nos no sentido de que venham a existir, pelo menos, oito idiomas diferentes que partem do português, e não oito centros de imposição neo‑colonial da língua portuguesa. Aliás – pondo, à partida, de lado o caso de Timor‑Lorosai, cuja língua nacional, o tétum, é um idioma austronésio, que não radica no português ‑, podemos adiantar que quatro dos oito países ditos de “língua portuguesa” já têm há muito tempo línguas lutónomas.
Referimo‑nos, quer à língua brasileira, quer aos chamados “crioulos” de Cabo Verde, Guiné, e São Tomé e Príncipe. São línguas que derivam do português, é verdade, mas são outras línguas. Têm variantes ou dialectos, evidentemente, e é desejável que assim seja. Ferdinand de Saussure conseguiu demonstrar que basta que uma língua seja falada a uma simples distância de cinco quilómetros para que surjam variantes. Entre a Galiza e o Algarve, o português de Portugal tem inúmeras variantes dialectais consoante as regiões. E o autor destas linhas, filho de pai duriense e de mãe alentejana, é um produto e uma testemunha privilegiada desse fenómeno. Restam‑nos Angola, Moçambique e Portugal.Abstenho‑me, neste momento, de abordar as questões relativas às chamadas “línguas nacionais”, na maioria bantu, de Angola e de Moçambique, que já tive oportunidade – e continuarei a tê‑la, espero – de desenvolver noutros lugares. Consideramos apenas o(s) “portuguê(eses) falado(s)”, quer em Angola, quer em Moçambique, quer em Portugal. Que dizer deles? Desde logo, bradar alto e bom som o enunciado de Alfredo Margarido: a língua é de quem a fala! No entanto, entendo que há algo mais a acrescentar, uma vez que, nos últimos anos, o inteligente postulado do meu saudoso professor prestou‑se a deturpações perversas que viabilizaram um lugar‑comum enganoso, falacioso e embusteiro: “não há donos da língua”. Em meu entender, é este o preconceito (neo‑colonial) que urge quebrar. É que há donos da língua!Os angolanos são donos do português falado e escrito em Angola, assim como os moçambicanos o são do falado e escrito em Moçambique e os portugueses do falado e escrito em Portugal. Portanto, qualquer iniciativa, ortográfica ou outra, que vise “unificar” as línguas que se falam nesses países é, inevitavelmente, um acto neo‑colonial – de ressurreição do Império, de aplicação da “prótese” de que falava Alfredo Margarido, a “prótese” dos (pre) conceitos segundo os quais “Portugal não é um país pequeno” ou de que “Portugal vai do Minho a Timor” ‑, mesmo que a hegemonia desse “imperialismo cultural” não caiba agora ao antigo colonizador, Portugal, e sim a qualquer antiga colónia politica e economicamente emergente, como parece ser, de momento, o caso do Brasil.
Lamentavelmente, a CPLP, que deveria ser a salvaguarda das diferenças, tem sido o principal agente desta operação de neo‑colonialismo cultural. Para isso muito contribui o facto de se tratar de uma organização de governos de circunstância, que servem interesses privados – “sem cor nem rosto”, como noutros tempos cantava Santocas ‑, e não de Estados, pelo que os povos acabam por não se rever nela. E os povos é que são os verdadeiros soberanos da sua própria memória e do seu património.
Cabe, pois, às sociedades civis dos nossos países, a sua preservação e, consequentemente, o exercício da soberania sobre os desígnios da CPLP, sem o que instituições deste género não têm a menor razão de existir.
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