Magnífico Reitor da Universidade do Algarve.
Ex.mo Senhor Ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior
Magnifico Reitor da Universidade de Cabo Verde,
Senhor Director da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais e outras autoridades académicas,
Senhor Embaixador de Angola,
Senhora Vereadora da Câmara Municipal de Faro
Senhora Governadora Civil de Faro,
Senhor Presidente da Associação Académica
Membros do corpo docente e discente desta Universidade,
Prezados convidados, familiares e amigos,
Minhas senhoras e meus senhores,
Tocou-me vivamente o gesto da Universidade do Algarve, ao se lembrar de me outorgar o título de Doutor Honoris Causa. Compreendo o gesto como vontade de homenagem que ultrapassa o próprio homenageado, mas também e principalmente visa uma literatura e uma nação, a angolana. Porque muito dificilmente se separará a obra e a vida de um escritor da história e cultura do seu povo. Agradeço profundamente a ideia desta celebração, que muito me honra e quero pois dedicá-la, com vossa permissão, ao povo angolano. Dedico-a também à minha mãe, que, como verão em seguida, teve um papel decisivo no meu percurso e à minha mulher, Filomena, infelizmente ausente nesta ocasião, responsável pelo menos por metade daquilo que tenho produzido. Agradeço também as generosas palavras de apresentação do Magnífico Reitor da Universidade de Cabo Verde, o Professor António Correia e Silva.
No meu fraco entender, considero que um ficcionista deve contar preferentemente estórias e não falar ou escrever sobre aquilo que é o seu trabalho íntimo, talvez o mais íntimo dos trabalhos humanos. Chamemos discrição ou suma vaidade a este cuidado de não revelar intimidades. Há porém escritores, também especialistas em teoria literária e que, sem cair em esquizofrenias, conseguem analisar, ponderar e divulgar aquilo que vão descobrindo nos textos ditados pela sua própria imaginação (alguns denominam subconsciente). Admiro a sua capacidade e até ousadia de exposição mas sou incapaz de os seguir. Da mesma maneira, não sou capaz de escrever mais de dez linhas sobre o trabalho de outro escritor sem começar a contar estórias que a meus olhos melhor o definem em contraposição às analíticas palavras habituais.
Dito isto, decidi para este acto complicado da minha vida (embora possa não parecer, convivo muito mal com as luzes da ribalta e, sobretudo, quando se trata de homenagens que sinto sempre não suficientemente merecidas). Mas dizia, decidi escrever algo que já tenho contado em entrevistas, em encontros com leitores ou alunos de escolas, mas nunca tinha vertido para o papel, dando-lhe assim mais espessura e talvez durabilidade. Portanto, tento aqui a resposta à sacramental e terrível pergunta: como começou a escrever ou como se tornou escritor? (O que não é exactamente a mesma coisa). Pois bem, vou contar-vos uma estória, verídica na sua essência, talvez ligeiramente ficcionada na sua forma, forçado pela necessidade da economia de tempo. Mas em todo o caso estória matemática, pois é de facto uma equação com várias incógnitas.
Tinha quatro anos de idade, quando a minha mãe me ensinou a reconhecer os números para poder jogar com dados um passatempo onde os cavalos avançavam sobre casas numeradas, transpondo obstáculos. E depois explicou-me como o meu cavalo saltava, contando as casas em função da sorte dos dados. Também havia penalidades, que consistiam em recuar algumas casas. Tinha de as contar. E, na varanda de trás da casa de Benguela onde nasci e vivi até aos cinco anos, arejada pela brisa brisando entre mamoeiros e goiabeiras do quintal, deitado no chão morno, no meu recato de solidão, fui lançando dados e fazendo avançar os cavalos, ao mesmo tempo que ouvia os pássaros em eternas serenatas amorosas e as máquinas embirrentas do vizinho Jornal de Benguela a atroar os silêncios de uma cidade semi paralisada no tempo. Até a minha mãe descobrir um dia que eu tinha aprendido a somar e subtrair, como se dizia na altura. A partir de então, fui uma espécie de macaco de feira. Nos jogos de futebol, os letrados da terra, no intervalo, passavam o tempo morto a me perguntarem quanto eram 12 mais 5 ou 18 menos 3. E lá lhes respondia, meio encabulado, ainda sem idade ou descaramento para lhes pedir com uma lata o tinido das moedas que provavelmente merecia por acertar nas respostas. Como qualquer macaco de feira. Podem crer, não sentia orgulho nenhum pelo aparente brilho do meu desempenho, antes a humilhação do macaco prisioneiro forçado a exibir-se para gáudio de uma qualquer plateia.
Minha mãe era sem dúvida uma professora frustrada, por nunca ter podido exercer a profissão que consideraria a mais nobre do mundo. Por isso, entusiasmada com a experiência didáctica anterior, embalou-se a ensinar-me a ler e escrever, tinha eu cinco anos. E entretanto fui descobrindo tesouros escondidos nos meus silêncios de menino recatado, ouvidor atento das conversas se processando na varanda ou no quintal. Aconteceu pois que, aos seis anos incompletos, e ao entrar na escola, já sabia todo o programa da primeira classe. Dois meses depois, promoveram-me para a segunda, a qual fiz sem mais dificuldades. A dificuldade derivou então para a escola, apanhada na sua própria armadilha. Iam ter de me admitir na terceira classe ainda com seis anos de idade, embora por escasso mês, devido ao calendário escolar da época. Não sei como se passaram exactamente as coisas, se o director escreveu para o delegado distrital pedindo desesperadamente orientações, se apenas o caso se circunscreveu à jurisdição da escola, mas acabaram por chamar a terreiro o especialista de maior nomeada para resolver tão intricado caso, o médico da terra, que por coincidência era irmão do meu pai. E o meu tio, que antes já tinha admoestado o casal por andar a cansar exageradamente o meu jovem e frágil cérebro, só capaz de assimilar o que o programa normal da escola indicava, foi determinante na decisão da escola: o menino não podia entrar na terceira classe com seis anos, era quase crime de lesa-majestade ou pelo menos de lesa-saúde cerebral, e portanto teria de repetir a segunda. A ciência falou, todos respeitaram. Erro fatal ou força do destino? Na época não frequentava os kimbandas, os nossos adivinhos tradicionais, e por isso não vos poderei responder. Mas de facto aqui começa a estória.
Ao fim de pouco tempo, a professora, aliás a mesma do ano anterior, me punha a corrigir os exercícios dos colegas, enquanto se abanava feliz num canto, até se abater com o sono provocado pela modorra do clima. Eu era o mais novo e o mais pequeno da classe, convém dizer. E corrigia matulões, daqueles que chumbavam pelo prazer de irem à praia fugindo das aulas e já experimentavam acender beatas nos recreios. Por vezes choviam ameaças, eh miúdo, como é que puseste errado no meu problema ou então, por que é que me marcaste tantos erros no ditado? Ou atentados parecidos, merecendo vingança nos jogos de futebol debaixo dos majestáticos jacarandás e mulembas do pátio da escola onde não era poupado a umas boas caneladas dignas de cartão vermelho, inexistente na época. Havia entretanto uma prova que me passou a pôr os nervos em franja, chamada redação, hoje composição, creio. Era sempre a mesma coisa. Sobre o gato, cão, boi ou pato, demonstrar como eram animais úteis ao homem. Deixem-me acrescentar, também havia dissertações sobre o pinheiro, a amendoeira ou o castanheiro, árvores que desconhecíamos obviamente, jamais saídos de território tropical. Ainda se fosse um imbondeiro… Já tinha feito esses exercícios no ano anterior. E teria de repetir a mesma lengalenga nesse ano. Eu que nunca gostei de repetir coisas.
Aqui entra a terceira variável da equação, o Thor, ainda não merecedor de trabalhar dentro de casa e confinado a tratar do quintal, não só por demasiado pequeno para limpar móveis e loiças mas sobretudo por ter vindo directamente do interior, sem educação urbana portanto. Continua a ser para mim um mistério o nome Thor, pois não pertence a nenhuma etnia da região, conhecendo-o como um dos deuses dos Viking. Provavelmente terá sido herdado de algum grupo de alemães ou equivalentes avançando para norte nos carros bóeres de oito juntas de bois, fugidos da actual Namíbia e falando línguas guturais do norte da Europa, em princípios do século passado. Ele provinha de um ponto de confluência de três povos, dois de pastores e um de agricultores. Pertencia aos agricultores. E contava as lutas entre pastores e agricultores por causa da posse das terras, mas também as lutas derivadas dos costumes pastoris de roubar um boi ao grupo adversário para um jovem passar a ser considerado adulto, tradição que ainda hoje se mantém e por vezes é causa de conflitos mais ou menos graves. Thor sabia estórias. Até mesmo as passadas bem antes de ter nascido e que permaneciam na memória colectiva do Planalto Central como momentos de grande terror, tais as célebres razias dos incomparáveis cavaleiros kuanhama, vindos muito do sul para confiscar gado e mulheres. E gostava de narrar, hábito adquirido no seu terreiro natal em que toda a vida social se passava ao fim de tarde e parte da noite à volta da fogueira, ouvindo os mais velhos e sábios relatar cenas do presente e do passado. Talvez também adivinhando futuros, quem sabe.
Em suma, íamos para cima de uma acácia à frente de casa e ele contava as mesmas ocorrências, porém nunca da mesma maneira.
A acácia rubra merece um parágrafo especial e peço licença para o introduzir. A casa nova, onde então habitávamos, tinha sido construída ao lado do antigo leito do rio Corinje. O meu pai era jovem quando desviaram o leito do rio para sul, servindo assim de limite ao território. É da sua recordação os antílopes irem beber água ao Corinje e os leões e onças aproveitarem a carne tentadora. A lenda contava que ao lado do rio, teve lugar uma luta de morte entre dois heróis: um leão de juba farta e acobreada e um homem armado apenas de um punhal. Foi alguma gazela o fruto da disputa? A lenda não reteve a razão. Apenas que o combate foi demorado e terminou com a morte de ambos os adversários. Diz ainda a lenda que o sangue dos dois heróis correu para a depressão onde uma jovem acácia brotava. Alimentada por esse sangue quase sagrado, a árvore ultrapassou as irmãs em altura e deu sempre flores mais encarnadas. Também os seus ramos grossos eram melhores para nos sentarmos neles e observarmos o contínuo movimento da rua. Pois bem, era para cima dessa acácia rubra que íamos conversar e Thor me contava as estórias do seu povo e dos vizinhos belicosos. Sempre fui amante de estórias, passava o tempo a pedi-las a todos os da casa, em especial ao cozinheiro e à lavadeira, que explicavam as cenas acontecidas nos seus bairros marginais, sem luz elétrica, sem água canalizada, sem lojas e sem asfalto, mas com muitos dramas, sofrimento e também paixões avassaladoras e gestos de heroísmo. Eu era um ouvidor de estórias. Mas não as sabia contar. E Thor insistia comigo, conta lá uma, e eu não o satisfazia, achava que não era capaz de as narrar com a mesma intensidade e o mesmo colorido que ouvira. Por isso me remetia à obscuridade da plateia e nunca ao fulgor do palco.
Aqui voltamos à segunda incógnita da equação, a escola.
Cansado de repetir as mesmas escritas sobre o melhor amigo do homem ou todas as partes do boi aproveitáveis, desde os chifres aos cascos, resolvi um dia arriscar as mãos numas reguadas e narrei uma estória, onde o tema pedido era respeitado, mas não as regras da demonstração, pois de ficção se tratava. Entregue o trabalho, arrependido já do rasgo impensado de ousadia, preparei-me para o justo castigo da palmatória de cinco olhos. Surpresa. A professora leu e releu, sorriu e depois partilhou a minha primeira estória escrita com toda a aula. Era isto mesmo que queria que vocês fizessem, rematou. Não só salva a integridade física, como elogiado. É claro, nunca mais segui as regras da demonstração escolástica. Ao menos divertia-me a inventar coisas sobre os temas pedidos. E a ouvir elogios, que sempre soavam melhor que as frequentes palmatoadas. E, talvez o mais importante, a ter estórias para o Thor. Subíamos à acácia, ele contava uma e eu lia o que não sabia contar. Tomado o gosto, não parei mais de escrever essas pequenas narrativas, cada vez mais desligadas dos temas escolares e entrando nas experiências de um menino na complexa e polissémica cidade de Benguela, em que parte considerável da população, cerca de metade, era mestiça e praticamente toda ela se orgulhava de ser do contra, qualquer que fosse o governo ou regime. Até hoje, se me permitem acrescentar, é um orgulho citadino o facto de ter sido o único espaço do então império português em que oficialmente ganhou as eleições de 1958 o general Humberto Delgado. Oficialmente, repito.
Outra variável a ter em conta: o gosto pela leitura e a boa biblioteca que tínhamos em casa. E um tio do lado materno, este jornalista, que começou a explicar-me certos assuntos que ninguém ousava esclarecer: por exemplo, porquê no nosso bairro, fronteira com a sanzala, os negros não dormiam dentro das casas mas nos anexos? Porquê eram criados, cozinheiros, lavadeiras, mas nenhum professor ou médico? Porquê Thor nunca tivera oportunidade de frequentar a escola? Aos treze anos, esse tio deu-me a ler Proudhon, com muitas recomendações de cautela, ninguém pode saber, lê às escondidas. Depois admiram-se de eu ser até hoje utópico e achar ainda que a propriedade está associada ao roubo…
As preocupações sociais e mais tarde políticas moldaram certamente a literatura que passei a fazer na adolescência. Eram gritos de revolta, um pouco anarquistas, abafados, porque reservados à escrita clandestina. No resto era um adolescente como os outros, jogando futebol, gostando de cinema e tentando namorar as miúdas mais bonitas. E pouca gente sabia que gastava parte das minhas noites a escrever estórias, muitas que não completaria, como o meu primeiro policial, até hoje sem a última página para desconhecer o nome do assassino. Diga-se de passagem, sem as outras páginas também, porque todas essas experiências de juventude foram perdidas ao longo da vida. Não é grave, o seu valor era mínimo, apenas o da memória.
Terá sido o jogo destas variáveis que me fez escritor? Talvez, e certamente umas variáveis mais importantes que as outras, mãe empenhada, obrigatoriedade de repetir um ano escolar, professora compreensiva, amigo contador de estórias, cidade de contradições, leituras variadas, injustiça na sociedade, etc., mas outras pessoas tiveram talvez experiências semelhantes e nunca pretenderam enveredar pelos mesmos caminhos. Ficará sempre a dúvida. Poderia por exemplo existir um fugaz sopro de vento e eu continuar por um qualquer curso de engenharia, nunca descobrindo a poesia dos números, à força de os usar sem os saborear. Ao escolher mais tarde a senda sociológica, podia ter limitado a minha imaginação a esse percurso e não o contrário, utilizando-a para a ficção. Por isso é tão complicado responder à questão do como e do quando se faz um escritor. Outros saberão. Prefiro deixar que búzios sejam atirados e os leitores adivinhem ou imaginem. O importante é a delícia e alívio que se tem quando um personagem nos surpreende, se apodera da narrativa e diz, agora sou eu que comando, tu, reles escritor, remete-te ao simples papel de escriba ou oráculo, enquanto eu, o personagem, passo a ditar a ação. Sim, nesse momento há o êxtase do corredor de fundo que ultrapassa as dores, a suprema fadiga, e entra no breve paraíso em que flutua sobre nuvens adocicadas antes do colapso final. Há sempre um colapso, todos o sabemos, mas o que interessa mesmo é o facto de se correr para lá da exaustão e pressentir como poderia ser o paraíso. Tal como escrever e deixar solta a imaginação, mesmo para a mais absurda das estórias. Por muito absurda que seja, nunca ultrapassará certas realidades.
Como vêem, sou um pouco herético sobre uma profissão que o escritor brasileiro João Ubaldo Ribeiro me confessou considerar como pouco decente para um honesto chefe de família. E eu respondi, pois é, mas eu não procurei essa profissão, ela é que me encontrou, decente ou não. E ele perguntou: foi numa encruzilhada de caminhos que foi apanhado? Certamente, disse eu. Perigosos, continuou o baiano, os espíritos das encruzilhadas. De facto, espíritos não conhecem rotundas. Encolhemos ambos os ombros, que havíamos de fazer?, e bebemos mais um copo.
Cada escritor terá a sua estória de como começou a escrever. E nem sempre será a mesma. Esta estória que vos contei não me foi revelada em noite de insónia ou de uma análise às profundezas escuras da minha memória, antes foi sendo construída no decorrer dos anos. Um detalhe ou outro acrescentado ontem e hoje. Não é forçosamente falsa pelo facto de se transmutar frequentemente. Apenas não considerei outras incógnitas que poderei vir a acrescentar à equação matricial daqui a cinco ou dez anos. E a retirar algumas variáveis, entretanto resolvidas pela usura do tempo ou aniquiladas pelos caprichos da moda. É esse o mistério da literatura.
Para benefício de todos nós, leitores.
Mais uma vez, muito obrigado a todos os que conspiraram para que esta cerimónia pudesse acontecer.
Pepetela – 28.04.2010
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